
A transição para a Lei nº 14.133/2021, a Nova Lei de Licitações (NLLC), reconfigurou diversas práticas na Administração Pública, mas poucas mudanças geram tantas dúvidas quanto a nova relação entre as modalidades pregão e concorrência. Compreender a sutil, porém decisiva, diferença entre elas é fundamental para gestores públicos e fornecedores, pois a escolha inadequada da modalidade pode comprometer a legalidade e a eficiência do processo licitatório. Este artigo desvenda as novas regras, focando nos critérios que agora definem o uso de cada uma.
O Fim da Distinção pelo Objeto: A Grande Mudança da NLLC
No regime da antiga Lei nº 8.666/1993, a distinção entre as modalidades de licitação era, em grande parte, definida pela natureza e pelo valor do objeto. O pregão, instituído pela Lei nº 10.520/2002, era destinado à aquisição de "bens e serviços comuns", aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade podiam ser objetivamente definidos no edital. A concorrência, por sua vez, era a modalidade residual, obrigatória para obras e serviços de engenharia de grande vulto e para contratações de valores elevados que não se enquadrassem como comuns.
A nova lei de licitações rompeu com essa lógica. A principal mudança é que o valor estimado da contratação deixou de ser um fator determinante para a escolha entre pregão e concorrência. A NLLC estabeleceu um novo paradigma, onde o fator decisivo para a escolha da modalidade é o critério de julgamento adotado, associado à natureza do objeto (comum ou especial). Conforme o Art. 29 da lei, o pregão passa a ser obrigatório para a contratação de bens e serviços comuns, cujo critério de julgamento seja o menor preço ou o maior desconto. A concorrência, por outro lado, torna-se a modalidade adequada para a contratação de bens e serviços especiais e de obras e serviços comuns e especiais de engenharia, além de ser a única que comporta critérios de julgamento mais complexos.
Essa alteração exige uma nova mentalidade do agente de contratação. A análise agora deve ser:
- O objeto é comum? Ou seja, pode ser descrito de forma objetiva e padronizada no mercado? Se sim, e o critério for preço, a modalidade será, obrigatoriamente, o pregão.
- O objeto é especial? Envolve complexidade técnica, natureza intelectual ou inovação que impede uma comparação puramente por preço? Então, a modalidade será a concorrência.
- Trata-se de uma obra ou serviço de engenharia? A modalidade será a concorrência, independentemente do valor.
Essa nova sistemática visa dar mais flexibilidade e adequação ao processo, garantindo que a complexidade da contratação seja refletida na modalidade escolhida, e não apenas em seu valor monetário.
Critérios de Julgamento: O Verdadeiro Divisor de Águas
Como mencionado, o critério de julgamento é agora o elemento central que separa o uso do pregão e concorrência. A Lei nº 14.133/2021, em seu Art. 33, elenca um rol de critérios que podem ser utilizados pela Administração. A aplicação de cada um está diretamente ligada à modalidade.
O pregão, por sua natureza focada na eficiência e na disputa por preço de objetos padronizados, ficou restrito a apenas dois critérios de julgamento:
- Menor preço: O critério clássico, onde o vencedor é aquele que oferece o menor valor pela execução do objeto.
- Maior desconto: Utilizado quando a Administração possui uma tabela de preços de referência e a disputa se dá sobre o maior percentual de desconto ofertado sobre essa tabela.
Qualquer contratação de bem ou serviço comum que se utilize de um desses dois critérios deverá, obrigatoriamente, ser processada por pregão. A tentativa de usar a concorrência nesse cenário pode ser considerada um vício de procedimento.
A Versatilidade da Concorrência
A concorrência, por outro lado, consolidou-se como a modalidade mais versátil e robusta, capaz de abarcar todos os critérios de julgamento previstos na NLLC, sendo a escolha adequada para contratações que exigem uma análise mais aprofundada do que o simples preço. Além do menor preço e maior desconto (aplicáveis a obras e serviços de engenharia, por exemplo), a concorrência pode utilizar:
- Melhor técnica ou conteúdo artístico: Utilizado para contratar serviços de natureza predominantemente intelectual ou criativa, como projetos, estudos técnicos e trabalhos artísticos, onde o preço é um valor fixo ou um prêmio estabelecido no edital.
- Técnica e preço: Um critério híbrido, ideal para serviços e bens especiais onde a qualidade técnica é tão importante quanto o custo. As propostas recebem pontuações técnicas e de preço, e o vencedor é definido por uma média ponderada.
- Maior retorno econômico: Aplicado em contratos de eficiência, nos quais a empresa vencedora é aquela que propõe a maior economia para a Administração (por exemplo, em um contrato de troca de lâmpadas por modelos mais eficientes, a remuneração da empresa é um percentual da economia gerada).
- Maior lance: Utilizado em situações específicas de alienação de bens ou outorga de direitos, onde a Administração busca obter a maior oferta financeira.
A amplitude de critérios disponíveis para a concorrência demonstra seu papel estratégico em contratações complexas, onde a qualidade, a inovação e o ciclo de vida do objeto são preponderantes.
Procedimentos em Foco: A Inversão de Fases e Suas Implicações
Uma das grandes vantagens do pregão sempre foi a celeridade processual, garantida pela chamada inversão de fases: primeiro julgam-se as propostas e, somente após a definição do vencedor, analisa-se a sua documentação de habilitação. Isso evita que a equipe de licitação precise analisar os documentos de todos os participantes, focando apenas no primeiro colocado.
A grande novidade da NLLC é que essa regra, antes exclusiva do pregão, tornou-se o procedimento padrão para todas as modalidades de licitação, inclusive a concorrência. O Art. 17 da lei estabelece que o rito procedimental comum seguirá as seguintes fases, em sequência:
- Divulgação do edital;
- Apresentação de propostas e lances;
- Julgamento;
- Habilitação;
- Declaração do vencedor;
- Homologação.
Portanto, o procedimento da concorrência NLLC, como regra geral, também adota a inversão de fases. Isso significa que a antiga diferença processual, que tornava a concorrência mais lenta e burocrática, foi significativamente mitigada.
Contudo, a lei prevê uma exceção importante. O § 1º do mesmo Art. 17 permite que, mediante ato motivado e justificado no processo, a fase de habilitação possa ocorrer antes da fase de julgamento. Essa inversão da "inversão" (retornando ao modelo clássico da Lei 8.666) só é permitida se o edital previr expressamente essa possibilidade e se for demonstrado que essa medida trará benefícios para a Administração. Essa exceção é útil em licitações de altíssima complexidade técnica, onde analisar a qualificação das empresas antes de suas propostas de preço pode ser mais seguro e eficiente.
Quando Usar Pregão ou Concorrência? Um Guia Prático
Diante do novo cenário, a decisão sobre quando usar pregão ou concorrência deve ser técnica e fundamentada na fase de planejamento da contratação. A escolha correta é crucial para o sucesso da licitação, como reiteradamente aponta o Tribunal de Contas da União em suas deliberações, a exemplo do Acórdão 2.873/2022-Plenário, que reforça a importância da correta definição do objeto como comum ou não.
Cenários para o Pregão
O pregão deve ser utilizado para adquirir bens e contratar serviços que não demandam uma avaliação subjetiva ou complexa. A chave é a padronização.
- Exemplos de Bens: Material de expediente, computadores e periféricos de prateleira, veículos, combustíveis, gêneros alimentícios, medicamentos padronizados.
- Exemplos de Serviços Comuns: Limpeza e conservação predial, vigilância patrimonial desarmada, manutenção de ar-condicionado, serviços de copeiragem, transporte de documentos.
Em todos esses casos, o objeto pode ser perfeitamente descrito no Termo de Referência, e a disputa se concentrará no menor preço ou maior desconto, garantindo eficiência e economia.
Cenários para a Concorrência
A concorrência é a modalidade para o que foge ao padrão, exigindo uma análise que vai além do preço.
- Obras e Serviços de Engenharia: Construção de edifícios, estradas, pontes, reformas complexas. Independentemente de serem comuns ou especiais, a modalidade é sempre a concorrência.
- Bens e Serviços Especiais: Contratação de uma agência de publicidade (critério de melhor técnica ou conteúdo artístico), desenvolvimento de um software sob medida (técnica e preço), consultorias especializadas, soluções de tecnologia da informação complexas e integradas.
- Contratos de Eficiência: Projetos que visam a redução de despesas correntes da Administração, como a modernização de sistemas de iluminação ou climatização (critério de maior retorno econômico).
A escolha pela concorrência se justifica pela necessidade de avaliar a expertise, a metodologia ou a inovação proposta pelo licitante, fatores que o pregão não comporta.
A correta aplicação dessas diretrizes não apenas assegura a conformidade legal, mas também potencializa os resultados da contratação pública, alinhando o procedimento licitatório à real necessidade da Administração.
Conclusão
A distinção entre pregão e concorrência na nova lei de licitações migrou de uma análise baseada em valor e objeto para uma avaliação focada no critério de julgamento e na complexidade da solução desejada. Enquanto o pregão se firma como a ferramenta célere para aquisições padronizadas, a concorrência se consolida como a modalidade robusta para contratações especiais e de engenharia, oferecendo a flexibilidade necessária para análises técnico-econômicas aprofundadas.
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