
A dispensa de licitação, um dos principais mecanismos de contratação direta, foi profundamente remodelada pela Lei nº 14.133/2021. Longe de ser um cheque em branco para o gestor público, essa ferramenta representa uma exceção à regra de licitar, aplicável em situações específicas e rigorosamente delimitadas. Compreender como funciona a dispensa de licitação na nova lei é crucial para garantir agilidade e eficiência à Administração Pública, sem abrir mão da segurança jurídica, da transparência e da isonomia, sendo um tema vital para todos os atores envolvidos nas compras governamentais.
O Que é a Contratação Direta e Quando Ela se Aplica?
No universo das compras públicas, a licitação é a regra geral. Trata-se de um processo formal e competitivo que visa selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração. Contudo, a própria lei reconhece que, em certas circunstâncias, a realização de um certame licitatório completo pode ser inviável, desnecessária ou até mesmo prejudicial ao interesse público. Nesses casos, surge a contratação direta, que é o gênero do qual a dispensa e a inexigibilidade de licitação são espécies.
É fundamental distinguir os dois institutos. A inexigibilidade (art. 74 da Lei 14.133/21) ocorre quando há inviabilidade de competição, como na contratação de um artista exclusivo ou de um serviço técnico especializado de natureza singular. Já a dispensa de licitação, tratada no artigo 75 da lei 14.133/21, ocorre em situações onde a competição seria possível, mas o legislador optou por afastá-la por razões de eficiência, celeridade ou economicidade, desde que preenchidos requisitos estritos.
Optar pela dispensa não significa ausência de procedimento. Pelo contrário, a Nova Lei de Licitações estabelece um rito processual claro que deve ser seguido, incluindo a formalização da demanda, a justificativa da escolha do fornecedor, a comprovação da compatibilidade dos preços com o mercado e a publicidade do ato. A decisão de não licitar deve ser sempre fundamentada, demonstrando que a contratação direta é a solução legal e mais adequada para o caso concreto, sob pena de responsabilização do gestor público.
As Principais Hipóteses de Dispensa no Artigo 75 da Lei 14.133/21
O artigo 75 da Lei nº 14.133/2021 apresenta um rol taxativo de situações em que a licitação é dispensável. Conhecer as hipóteses de dispensa mais comuns é essencial para a correta aplicação do instituto. Embora o artigo contenha diversas alíneas e incisos, algumas se destacam pela sua frequência e relevância prática no dia a dia da Administração Pública.
A seguir, detalhamos as hipóteses de maior aplicação, que todo servidor e fornecedor deve dominar para navegar com segurança no ambiente da nova legislação.
Dispensa por Valor: Os Novos Limites e a Atualização Monetária
A hipótese mais conhecida é, sem dúvida, a dispensa por valor. A lei estabelece tetos financeiros abaixo dos quais a Administração pode realizar a contratação direta, visando a desburocratização de compras de baixo montante. Com a nova lei, esses limites foram significativamente ampliados e estão sujeitos à atualização anual. Conforme o Decreto nº 11.871, de 29 de dezembro de 2023, os valores atualizados são:
- Até R$ 119.812,02 para contratação de obras e serviços de engenharia ou de serviços de manutenção de veículos automotores (Inciso I).
- Até R$ 59.906,02 para outros serviços e compras em geral (Inciso II).
É crucial notar que esses valores se referem ao somatório de despesas de mesma natureza no exercício financeiro. O fracionamento de despesa para se enquadrar indevidamente na dispensa por valor é uma prática irregular e severamente fiscalizada pelos órgãos de controle, como o Tribunal de Contas da União (TCU).
Situações Emergenciais ou de Calamidade Pública
Prevista no inciso VIII do artigo 75, esta hipótese permite a contratação direta para atender a situações que possam ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares. Para sua caracterização, é necessário:
- Situação emergencial ou calamitosa real e iminente: A urgência não pode ser decorrente da falta de planejamento ou da desídia do gestor.
- Risco concreto: Deve haver uma demonstração clara do dano potencial.
- Limitação do objeto: A contratação deve se limitar à parcela estritamente necessária para o afastamento do risco.
- Prazo máximo: O contrato decorrente desta dispensa não pode exceder o período de 1 (um) ano, vedada a prorrogação.
Licitação Deserta ou Fracassada
O inciso III do artigo 75 autoriza a dispensa quando uma licitação se revela deserta (não aparecem interessados) ou fracassada (todos os licitantes são inabilitados ou todas as propostas são desclassificadas). Para utilizar essa hipótese, a Administração deve demonstrar que a repetição do certame traria prejuízo e, fundamentalmente, deve manter todas as condições definidas no edital original, incluindo o preço máximo e o termo de referência.
O Passo a Passo da Dispensa de Licitação Eletrônica
Uma das maiores inovações da Lei nº 14.133/2021 foi a institucionalização do procedimento eletrônico para as dispensas. O passo a passo da dispensa eletrônica, também chamada de cotação eletrônica, trouxe mais transparência e competitividade a esse tipo de contratação, especialmente para as dispensas por valor. O processo, regulamentado em âmbito federal pela Instrução Normativa SEGES/ME nº 67/2021, segue um fluxo lógico:
- 1. Planejamento e Instrução Processual: O processo inicia com o Documento de Formalização da Demanda (DFD) e os Estudos Técnicos Preliminares (ETP), que justificam a necessidade da contratação. Em seguida, elabora-se a análise de riscos, o termo de referência e a pesquisa de preços, que estimará o valor da contratação.
- 2. Justificativa e Enquadramento: O gestor deve elaborar uma nota técnica ou parecer jurídico fundamentando a escolha pela contratação direta, enquadrando o caso em uma das hipóteses de dispensa do artigo 75.
- 3. Divulgação do Aviso de Contratação: Para as dispensas por valor (incisos I e II), o procedimento é preferencialmente eletrônico. A Administração publica um aviso de contratação direta no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) e no sistema eletrônico utilizado (como o Compras.gov.br). O aviso informa o objeto, as condições e um prazo mínimo para que os fornecedores interessados registrem suas propostas.
- 4. Fase de Lances (Cotação Eletrônica): Durante o período estabelecido, os fornecedores enviam seus preços. O sistema classifica as propostas da menor para a maior. Em muitos casos, pode haver uma etapa de lances, similar a um pregão, onde os fornecedores podem competir para reduzir ainda mais seus preços, otimizando o resultado para a Administração.
- 5. Análise e Habilitação: Encerrada a fase de lances, a Administração analisa a proposta de menor preço, verificando se ela atende a todas as especificações do termo de referência. Em seguida, convoca o fornecedor para apresentar seus documentos de habilitação (regularidade fiscal, trabalhista, qualificação técnica, etc.).
- 6. Adjudicação e Publicação: Estando toda a documentação em ordem, o objeto é adjudicado ao vencedor. Todo o processo, incluindo o contrato e seus aditivos, deve ser publicado no PNCP, garantindo a máxima transparência.
Este procedimento eletrônico, embora não obrigatório para todas as hipóteses, é a grande tendência e a melhor prática, pois amplia a competição, fomenta a obtenção de preços mais vantajosos e fortalece o controle social sobre as contratações diretas.
Conclusão: Eficiência e Controle na Contratação Direta
A dispensa de licitação na Lei nº 14.133/2021 evoluiu de um simples ato administrativo para um procedimento estruturado e, preferencialmente, eletrônico. A nova sistemática busca equilibrar a necessidade de agilidade da Administração com os princípios da transparência, isonomia e busca pela proposta mais vantajosa. Dominar as hipóteses legais e o rito processual é, portanto, um dever para gestores e uma oportunidade para fornecedores que desejam contratar com o poder público de forma segura e eficiente.
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